Há 38 anos, revolução varria ditadura salazarista prometendo liberdade e vida digna. Agora, crise e decadência reacendem desejo de mudanças
Por Antonio Barbosa Filho, correspondente na Europa
COIMBRA, Portugal – Em abril de 2011, parte dos portugueses chocou-se com uma frase proferida por Otelo Saraiva de Carvalho, um dos líderes do movimento que derrubou, em 1974, a ditadura salazarista de 48 anos. Indagado sobre a crise em que Portugal já estava mergulhado, este ex-”capitão de abril” declarou, em desencanto: “Se eu soubesse como o país ia ficar, não faria a Revolução”.
Tal sentimento é compartilhado por muitos cidadãos que já tinham, em 25 de abril de 1974, idade para entender o significado da “Revolução dos Cravos”, ou para participar ativamente dela. É comum ouvir-se frases como a de um senhor de 65 anos, de Coimbra, que pede para não ser identificado: “Os sonhos de 74 permanecem vivos, mas estão a cada dia mais longe da realidade. Víamos um futuro que nos tiraria da condição de país mais pobre da Europa. Hoje continuamos o país mais pobre da Europa, e não enxergamos melhor futuro a médio prazo”.
O discurso do poder abate o ânimo da maioria, e revolta aos mais engajados na discussão política. Reza este credo que a saída da crise virá pelo aumento das exportações. Porém, para exportar mais, Portugal só tem um caminho: tornar mais barata sua mão-de-obra. Cortar profundamente os serviços sociais. Estimular o desemprego, na esperança de que ele pressione para baixo os salários.
O país não conta com matérias-primas que o mercado mundial demande, e sua indústria não é competitiva. Das cerca de 300 mil empresas existentes, somente 18 mil exportam parte de sua produção – sendo que uma centena concentra 50% do valor total. Os setores dos vinhos e do azeite, tradicionalmente voltados ao mercado externo, enfrentam barreiras tarifárias em vários países que buscam conter suas importações. No Brasil, por exemplo, os vinhos portugueses são tributados em 27%; mas tal tarifa está para subir a 55%, o que apavora os produtores e os faz pedir intervenção do governo junto à presidenta Dilma Roussef.
Compare-se este quadro ao que prometia o Movimento das Forças Armadas (MFA), que liderou o golpe de 74. Um de seus maiores objetivos era “elevar rapidamente o nível social, econômico e cultural de todo um povo que viveu 48 anos debaixo de uma ditadura”, como recordava Otelo Saraiva há um ano, quando dois dos dez milhões de portugueses viviam na pobreza. Foi tudo um sonho que, depois de alguns avanços, acabou virando pesadelo.
A premiada escritora Deolinda Gersão, falando a Outras Palavras, lembra que a Revolução dos Cravos foi muito aguardada. “Todos queríamos o fim da ditadura, das guerras coloniais. Quando veio a queda do regime, o clima foi de euforia. Mas logo vimos que o grupo dominante queria implantar outra ditadura, só que de esquerda, o que gerou medo na população. Queríamos liberdade, mas o Partido Comunista português era dos mais estalinistas do mundo, e permanece assim. Foi só com o Mário Soares, do Partido Socialista, que se conseguiu equilibrar as forças e o país cresceu, os serviços sociais melhoraram substancialmente. Mas depois veio o neoliberalismo, e agora esta crise que afeta até a Cultura. Há muita gente boa escrevendo e publicando, mas os que compram livros são os mesmos, o mercado não cresce devido à falta de dinheiro nos bolsos das pessoas”.
Deolinda (autora do romance A Árvore das Palavras [resenha | comprar], vencedor do Prêmio de Ficção do PEN Clube português e publicado no Brasil) não emite posições políticas, mas compreende e lamenta o que se passa na sociedade portuguesa, onde os mais pobres sofrem as piores consequências da crise.
Neste aniversário de 38 anos da Revolução, o país reflete sobre os avanços que ela trouxe em termos das liberdades públicas e elevação do padrão de vida. A liberdade continua preservada; já as conquistas sociais estão todas retrocedendo, como ocorre com as aposentadorias dos funcionários públicos, os salários em geral, os serviços públicos da Educação e Saúde, além da queda geral do poder aquisitivo do euro.
A situação deteriorou-se a tal ponto que a revista Visão promoveu uma pesquisa entre 38 profissionais de várias áreas sob o tema “Precisamos de um novo 25 de abril?” As respostas da maioria indicam que ninguém cogita de outro movimento armado contra o governo, mas existe realmente uma rememoração saudosa dos “ideais de Abril”. Como afirmou o músico Adolfo Luxúria Canibal, que tinha 14 anos na época do golpe, é preciso “uma nova dinâmica de esperança para as pessoas que, foi, afinal, o mais importante há 38 anos. É preciso voltarmos a acreditar que podemos melhorar a nossa vida – no quotidiano, na Saúde, na Educação, na Cultura. A seguir ao 25 de Abril de 1974, houve uma democratização transversal da sociedade portuguesa que nos trouxe muitas coisas que parecem estar, agora, a ser postas em cena”.
Na mesma enquete, o sindicalista António Chora, coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa, afirma: “Portugal precisa de um novo 25 de abril, feito em democracia, que permita à política voltar a liderar os destinos do país. Porque, atualmente, são a economia e as finanças que manobram a política”.
Os mais velhos sentem que seus sonhos foram interrompidos depois de um começo esperançoso; os mais jovens parecem perguntar, como diriam os brasileiros: “por que parou? parou por que?” Veremos muitos atos de homenagens ao 25 de Abril, mas praticamente isolados entre si, e a grande maioria de protesto contra as atuais políticas. Nas ruas, o que se vê é o povo considerando o governo uma simples junta de gestores das imposições da troika (Banco Central Europeu, União Européia e FMI). Lançam-se a cada semana medidas de maior contenção de gastos e cortes nos orçamentos sociais, que levam ao fechamento de hospitais, alta inadimplência nas escolas e universidades pagas (até Coimbra está acionando alunos em débito), estímulos à demissão voluntária, e queda geral dos salários e do poder aquisitivo. Tudo muito diferente daquele dia em que povo e soldados acabaram com um regime ditatorial, e parecia que Portugal entraria numa era de prosperidade.