DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA
MANDA LEMBRANÇAS
Debate é tão atual que apareceu até numa
noite de festa, invocado como um fantasma
autoritário por jornalistas que querem
manter tudo como está -- inclusive nos meios
de comunicação
Imagine você que na última segunda-feira fui ao tradicional Club
Homs, na avenida Paulista, como um dos homenageados na entrega
do Premio dos 100 Jornalistas Mais Admirados dos país. Encontrei
amigos, revi colegas sumidos. Subi ao palco, agradeci o prêmio e os
votos que recebi e fui embora.
Num mundo cada vez mais atomizado, iniciativas desse tipo, realizada
pelo site Comunique-se, merecem aplauso. Reforçam o convívio entre
as pessoas, ajudam a manter laços esgarçados, reforçam a solidariedade.
Lembrando que cientistas políticos sustentam que até corais de vizinhos
ajudam a dar raizes ao regimes democrático, pois constroem laços que
atravessam uma comunidade inteira, só podemos valorizar eventos dessa
natureza.
Mas o evento de segunda-feira ajudou a mostrar uma divisão política
clara entre jornalistas, entre os mais prestigiados do país, a respeito de
um tema de urgência — a democratização dos meios de comunicação.
Num sinal dos tempos que vivemos, enquanto centenas de presentes
estavam à mesa, permutando nostalgias, diversos colegas que também
subiram ao palco na condição de “mais admirados,” aproveitaram o
microfone para falar de supostas ameaças que perseguem a liberdade de
imprensa do país.
Nós conhecemos a matriz desse discurso. Tenta-se desqualificar um
debate necessário, apresentando toda tentativa de mudar uma situação
de monopólio — proibido pela Constituição — como um exercício de
ginástica bolivariana. Respeitando o direito de todos a manifestar sua
opinião, sempre que consideram adequado, sabemos que é um
comportamento coerente com a mobilização conservadora que marcou
a derrota de Aécio Neves em 26 de outubro, que tem incluído passeatas
de protesto e até pedidos de impeachment sob liderança de neo-ativistas,
inclusive Lobão.
Mas, mesmo iniciada por seus adversários, a discussão tem absoluta
atualidade.
Um dos mais aplicados críticos da mídia brasileira, o jornalista Luciano
Martins Costa — também premiado — aproveitou sua coluna no
Observátorio da Imprensa, no dia seguinte, para fazer a discussão. Disse
que os adversários da democratização da mídia “desfiaram seus temores
e seu repúdio a uma suposta ameaça à liberdade de imprensa, que estaria
pairando sobre o universo midiático. Foi quase uma manifestação de
solidariedade ao credo patronal: o Brasil estaria à beira de ver ressuscitar
a censura do período militar, agora por conta de um regime ‘bolivariano”
em Brasília.” No mesmo tom, outro premiado, Ricardo Kotscho, comentou:
“Não encontro nenhuma razão objetiva, nenhum fato novo concreto,
qualquer sinal de que a liberdade de imprensa esteja correndo perigo no
Brasil.”
Não custa lembrar que este debate só pode ser compreendido a partir de
um contexto mais amplo. A discussão sobre riscos — imaginários, em
minha opinião — à liberdade de imprensa, tem origem no lugar que os
principais grupos de comunicação decidiram ocupar na vida da sociedade
brasileira nos últimos anos, em particular depois da posse de Luiz Inácio
Lula da Silva no Planalto, em 2003. Como ficou particularmente claro na
campanha presidencial, temos hoje uma nítida divisão entre opiniões
políticas que se manifesta no apoio ou na oposição às principais políticas
de Estado, do Bolsa Família à valorização do salário mínimo, cotas para
ingresso na universidade e uma política externa menos dependente dos
Estados Unidos.
Eu acho que os jornalistas que se colocam como adversários da
democratização dos meios de comunicação, repetem o comportamento
das corporações de que em 2013 usaram a presença de médicos cubanos
para combater o programa Mais Médicos — sem dar respostas concretas a
população da pobre que não consegue encontrar um doutor para cuidar de
suas dores nem quando o Estado se dispõe a pagar R$ 30 000 por mês.
Estamos falando de projetos para o país, de esquerda e direita, ainda que,
em função dos vínculos jamais apagados com o regime de 64, a “direita”
brasileira prefira não dizer seu nome e até sustentar que essas distinções
foram eliminados em algum ponto da história humana posterior à Queda
do Muro de Berlim.
Após a quarta vitória do bloco Lula-Dilma em eleições presidenciais, feito
raríssimo nas democracias do mundo, parece difícil negar que uma parcela
importante da população não se sente representada pelas opções de mídia
que estão aí. A maioria de jornais, revistas, emissoras de r[adio e TV, não
só estão alinhadas sem pudor no apoio aos adversários, mas são capazes de
orientar a cobertura factual para sustentar suas preferências políticas, num
tratamento seletivo que é particularmente nocivo para o debate público e a
formação dos cidadãos.
Não se trata, é claro, de um debate de interesse exclusivo de jornalistas.
Estes são profissionais que, em 99% dos casos, jamais têm o direito de
usufruir da liberdade apresentar os fatos à sua maneira, de acordo com
sua opinião. Sobrevivem como cidadãos submetidos a uma divisão de
trabalho que se tornou ainda mais rígida depois que os meios de
comunicação se tornaram parte essencial da polarização política do país.
Não haveria nada de mais na situação atual se ela fosse fruto de uma
disputa leal, entre ideias e instituições que tiveram a chance de concorrer
entre si e vencer com igualdade de condições. Mas não. Vivemos num
país onde impera uma política de comunicação que procura tirar vantagens
tanto da herança do regime militar como das noções de uma
desregulamentação grosseira, radical como em poucas partes do mundo —
para impedir a entrada de novos concorrentes, manter tudo como sempre
esteve, e até piorar um pouco.
No plano das garantias do cidadão, o Brasil aboliu o direito de resposta,
que era a principal proteção efetiva contra erros e abusos cometidos por
jornalistas, e que foi, ironicamente, uma das poucas garantias democráticas
previstas pela carta de 1967, do regime militar.
No terreno das emissoras de rádio e TV, que são uma concessão pública,
convive-se sem remorso com o entulho deixado pela ditadura — que
perseguiu e esfacelou aliados do antigo regime — reforçado pelos
movimentos sequenciais de José Sarney para engordar as legendas
conservadoras e garantir cinco anos de seu mandato na Assembléia
Constituinte.
Em vez de procurar limites a concentração de propriedade, numa
mercadoria que pode conduzir ao domínio da informação e da opinião,
nada se faz para cumprir uma Constituição que condena o monopólio e
o oligopólio em qualquer setor da economia, seja a venda de sabonetes,
as redes bancárias e as fábricas de chocolate.
Esta é a discussão de fundo que precisa ser encarada, destravando um
debate que foi sufocado em 1988 pelo Centrão que fez maioria na
Assembléia Constituinte. Derrotado no debate político, nosso
conservadorismo foi vitorioso no atalho regimental: estabeleceu a
exigência de que todas as mudanças só entrariam em vigor quando
fossem regulamentadas por lei ordinária –e a partir então a bancada
de amigos trabalha tem trabalhado com empenho para impedir que
isso aconteça, consolidando interesses cada vez mais poderosos para
impedir qualquer mudança.
O esforço para encontrar raízes bolivarianas neste debate não resiste
a 5 minutos de Google.
Basta ler os projetos originais, de um quarto de século atrás, da deputada
Cristina Tavares, daquele honroso PMDB pernambucano ligado as lutas
contra a ditadura de onde saiu Eduardo Campos, e do senador Arthur da
Távola, da geração tucana que honrava a palavra social-democracia, para
compreender o alcance da discussão de hoje. Quem fala em bolivarianismo
não sabe o que diz — ou sabe tão bem que procura confundir em vez de
esclarecer. Quando a Constituinte encerrou seus trabalhos, de forma
positiva em tantos capítulos, mas melancólica em outros, Hugo Chávez
era um simples coronel com ideias de esquerda, que desenvolvia uma
militância clandestina nos quartéis da Venezuela.
http://paulomoreiraleite.com/2014/12/13/democratizacao-da-midia-manda-lembrancas/
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