Acorda, Brasil
Argentina sai na frente ao criar televisão aberta a todos os sotaques e vozes. No Brasil, a sociedade cobra Dilma para avançar projeto já rascunhado. A Bahia saiu na frente
Por: João Peres
Publicado em 09/03/2012
Damián Loreti olhava com ciúme para o outro lado da fronteira. O Brasil tinha tantos grupos que discutiam a necessidade de democratizar a comunicação e o debate era tão avançado que o veterano estudioso do tema sentia saudável inveja. Na Argentina da virada do século, o tema estava restrito a algumas dezenas de “maníacos”, mas em pouco tempo a equação se inverteu. Quem acompanha o assunto do lado de cá olha para o lado de lá admirado.
Hablemos todos - A mudança na legislação passou mais de um ano sendo discutida no Congresso
(Foto: Daniel Garcia/AFP Photo/getty images)
(Foto: Daniel Garcia/AFP Photo/getty images)
“Sem vontade política é impossível. Sem um bom projeto, também”, resume o decano do curso de Comunicação da Universidade de Buenos Aires (UBA) sobre a Lei de Meios, sancionada em 2009. O projeto existia havia tempos, composto por 21 objetivos, e a vontade política amadureceu na entrada do novo século, quando centenas de entidades se somaram na Coalizão por uma Radiodifusão Democrática. Corria 2008 e o governo de Cristina Kirchner estava em pé de guerra com os representantes do agronegócio.
Não tardou para que o gabinete presidencial se desse conta de que circulava somente uma versão dos fatos: a dos empresários, fruto da concentração de emissoras de rádio e TV nas mãos do grupo Clarín, comparável às Organizações Globo. Apenas sete cidades recebiam mais de um sinal de canal de televisão aberta. Sem programações que mostrassem o mundo de diferentes pontos de vista, estava imposta uma verdade única. Era hora de tirar o pó do projeto apresentado pela sociedade quatro anos antes.
Na ocasião, o Brasil preparava a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Pela primeira vez reuniram-se governos, empresários – embora alguns tenham se negado ao debate – e pessoas dos mais diversos segmentos em torno do objetivo de tornar a produção de informação um retrato mais fiel da diversidade cultural, geográfica e política do país. Foram centenas de reuniões primeiro nas cidades, com propostas depois levadas a edições estaduais e, por fim, ao encontro nacional, em dezembro de 2009.
O então ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, experiente jornalista com passagens por Globo e Bandeirantes, começou a elaborar um anteprojeto para promover a democratização da comunicação. O texto tomou como base os debates da conferência nacional e as experiências de diversos países de avançada democracia – entre os quais a Argentina, já com sua nova legislação em vigor. O esboço de Franklin foi repassado ao ministério de Dilma Rousseff, mas ainda não andou.
Como se faz democracia
Cem mil mulheres chegam a Brasília vindas de todas as partes do território nacional. São trabalhadoras rurais, caminham durante dias e são recebidas pela presidenta da República para discutir reforma agrária. Em outro dia, 20 mil produtores rurais ocupam a Esplanada dos Ministérios. Querem que o Congresso vote as mudanças na legislação florestal para poder desmatar além dos limites atuais. Dois temas relevantes para a sociedade? Não para a Globo. A Marcha das Margaridas recebeu 18 segundos da edição de 17 de agosto de 2011 do Jornal Nacional. Já o churrasco da maior entidade ruralista, 127 segundos.
A marcha das margaridas quase nem foi divulgada pela mídia
(Foto: Marcello Casal Jr/ABr)
(Foto: Marcello Casal Jr/ABr)
“Ninguém quer acabar com a Globo nem democratizar a Globo. Ela cumpre um papel político e cultural no Brasil”, diz Renata Mielli, da coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Em outras palavras, cada empresa pode transmitir o que achar importante, mas as margaridas, as acácias, as violetas e todas as flores têm direito a uma emissora que as represente – e todo cidadão, o direito de buscar e encontrar uma cobertura diferente. “O objetivo é fortalecer um campo público de comunicação e discutir regras transparentes para a concessão de canais.”
As estações de televisão ou de rádio que escolhemos todos os dias são um espaço público. Esse espaço é invisível, está no ar, mas é limitado, o que significa que não se pode abrir infinitas emissoras. Essa restrição torna necessária a presença do Estado para regular e disciplinar a distribuição das concessões, feitas mediante leilões válidos para um determinado período. Na prática, é como se uma pessoa alugasse uma frequência.
Como qualquer contrato de aluguel, há direitos e deveres. Se descumpridos, implicam advertência, multa e até rompimento do vínculo. O Brasil, por enquanto, não discutiu essas regras. Há conceitos apresentados pela Constituição a ser refinados para, caso o inquilino desrespeite o acordo, o locatário – o povo bra-sileiro – poder solicitar de volta o imóvel, ou melhor, a frequência.
O texto constitucional de 1988 diz que o setor não pode ser alvo de monopólio ou oligopólio, mas não estão definidos quais são os parâmetros que configuram essa concentração. Os veículos de rádio e TV devem dar preferência a conteúdos educativos e culturais – porém, sem esmiuçar o que isso significa, a sociedade não tem como cobrar a aplicação.
“O discurso da censura é o discurso dos censores”, lamenta João Brant, do Coletivo Intervozes, atuante na batalha pela democratização da comunicação. “A regulação precisa incidir diretamente sobre a questão do pluralismo e da democracia e garantir que as diferentes vozes e perspectivas fluam ao debate público.”
Assim ficou definido nas nações europeias e nos Estados Unidos, e é desse modo que deseja a Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação e a cultura. Toby Mendel, consultor internacional da entidade, lembrou durante um seminário realizado em Brasília em 2010 que liberdade de expressão não é só o direito de ouvir: é o direito de falar. O preceito é reafirmado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que enxerga a comunicação como um direito humano básico, a exemplo da saúde, da educação e da alimentação. Se há conselhos municipais, estaduais e nacionais para discutir essas questões, por que a comunicação ficaria de fora?
Na Argentina, diferentemente da Europa, as concessões sempre estiveram com o setor privado. Sempre esteve evidente que poder e comunicação andam juntos, e rapidamente as frequências de transmissão foram distribuídas entre amigos. “Se há algo claro é que o mercado não assegura pluralismos. Os que não têm dinheiro não falam”, adverte Loreti. Quadro parecido com o brasileiro. As outorgas são de atribuição do Ministério das Comunicações e o governo precisa de apoio no Congresso. Parlamentares querem o seu veículo para controlar o noticiário em sua região.
A organização Transparência Brasil encontrou 52 deputados e 18 senadores associados a empresas concessionárias de comunicação. A renovação das outorgas é atribuição dos parlamentares.
Por essa e por outras, a Constituição prevê que eles não participem de concessões de serviços públicos, para evitar que legislem em causa própria. Em dezembro passado, o Intervozes e o PSOL ingressaram com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar essa situação.
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