sábado, 14 de setembro de 2013

LIVRO MOSTRA PAPEL DA MÍDIA NO "JULGAMENTO-SHOW" DO TAL MENSALÃO:


Um livro que deve interessar a advogados, jornalistas e cidadãos que desejam entender melhor como a mídia oposicionista fez do julgamento da Ação Penal 470 pelo STF um espetáculo carregado de emoção e vazio de racionalidade. Mentiras foram transformadas em verdades, a falta de provas virou fato consumado, defunto cometeu crime três meses depois do óbito. Desde o primeiro dia, os réus foram condenados, com o presidente da Corte travestido de supremo-promotor - Joaquim Barbosa mostrou-se indigno e incompetente para sua alta função, deslumbrado com a propaganda que a mídia fazia de si. A massa enganada chegava a aplaudí-lo nas ruas e alguns cogitaram de lança-lo candidato a Presidente da República, o que simplesmente colocaria no poder um ditador. 
Abaixo, o autor do livro de entrevistas avança alguns pontos tratados em seu importante trabalho. Só um aperitivo, pois o livro é imperdível:
AP 470: análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa - texto de Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina
Durante todo o julgamento da Ação Penal 470/MG, fruto da denúncia do Procurador-Geral da República Antonio Fernando de Souza, sobre o rumoroso caso que ficou conhecido como “mensalão”, fiquei pessoalmente impressionado com a cobertura midiática. O Jornal Nacional, com milhões de espectadores, durante um semestre inteiro tinha entradas ao vivo de Brasília explicando, ao seu modo, os acontecimentos do dia a dia no julgamento de uma ação penal.
Não era só, a TV Justiça transmitia também ao vivo debates acalorados, para dizer o mínimo, entre os ministros. Em sua edição 2290 a revista Veja trouxe como reportagem de capa a história da vida do Ministro Joaquim Barbosa, alçado ao posto de herói nacional, enquanto o Brasil era induzido, em conjunto, a demonizar o Ministro Ricardo Lewandowski. 
De uma vez, os ministros passaram a fazer parte do imaginário popular, como defensores da democracia. O Ministro Joaquim Barbosa, mesmo declarando que não tem tais intenções, figurou em pesquisas de intenções de voto para presidente realizadas pelo Instituto Datafolha, ministros davam entrevistas com frequência nunca antes vista e réus iam votar escondidos nas eleições de 2012. No meio de tudo isso, estava lá a ação penal.
Petrus Borel anotou que “as vaidades e as paixões são os senhores do mundo”, a ação penal 470 experimentou isto: pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal parou por tanto tempo para julgar uma única causa. Se uma pesquisa tivesse sido feita naquele momento a maioria do povo brasileiro condenaria todos os acusados, refletindo neles as frustrações com a política nacional.
Apenas três réus (Valdemar da Costa Neto, João Paulo Cunha e Pedro Henry) gozavam da posição do foro privilegiado no julgamento. Mesmo assim, por nove votos a dois, o Supremo decidiu pelo não desmembramento da ação.  Um dos entrevistados aqui afirmou que o STF precisava julgar esta ação para demonstrar efetividade ao povo brasileiro. Verdade ou não, pela primeira vez o IBOPE incluiu a instituição no seu Índice de Confiança Social, que mede a confiança da população nas instituições brasileiras, e o Tribunal ficou em terceiro lugar, atrás do Corpo de Bombeiros e da imprensa, respectivamente.  
Em meio aos debates acalorados na Corte, “especialistas” apontavam nas transmissões de canais de notícias 24h os possíveis desdobramentos do julgamento e faziam previsões sobre a sentença e até sobre a execução das penas, mesmo sendo jornalistas sem qualquer formação jurídica,. Entrevistado neste livro, Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, declarou aqui que “a pior coisa para os réus dessa ação foi a Globo ter perdido as olimpíadas para a Record”. De fato, no dia 29 de julho de 2012, as vésperas do início do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” no Google foram maiores do que por “Avenida Brasil”, então novela do horário nobre da Rede Globo. No dia 3 de agosto de 2012, um dia depois do começo do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” superaram em quatro vezes as buscas pela novela do horário nobre.
Vieram as condenações, 25 de 38 réus foram condenados. Estão na lista os políticos mais conhecidos, os publicitários e os banqueiros. Marcos Valério, apontado como operador do esquema de corrupção pelo Ministério Público, recebeu uma pena de mais de quarenta anos de prisão. José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil de Lula, teve a pena imposta de dez anos e dez meses. 
O STF endureceu de tal maneira o tratamento penal dos réus da AP 470 que o recém-empossado Ministro Luís Roberto Barroso, em sua sabatina para indicação ao cargo, em junho de 2013, declarou que “o mensalão foi, por muitas razões, um ponto fora da curva”,. Nas redes sociais, o Ministro Joaquim era alçado à posição de justiceiro nacional por isto.
Sempre gostei de ler vários jornais e ao ligar a televisão ou ler um deles, comecei a perceber o tratamento que a mídia reservava aos casos penais. Cada edição dos principais jornais brasileiros traz, numa tacada só inquérito, julgamento e sentença, e entrega tudo isto à população como a verdade dos fatos, o caso do mensalão foi talvez o exemplo mais paradigmático disto. Sérgio Salomão Shecaira ensina que “a notícia não é nunca um espelho da realidade, mas sim um objeto construído, não obstante tentar parecer espelho dessa realidade”. O problema que busquei abordar aqui foi justamente essa construção diante do julgamento da Ação Penal mais importante da história da República, as pressões que a Corte sofreu, do principal meio de formação de opinião pública, a mídia, a partir da visão daqueles que talvez tivessem mais a falar, mas que foram os menos ouvidos, os advogados dos réus da AP 470.
Trial by media  
Tão logo um caso penal surge, torna-se imediatamente matéria de jornal, a mídia “se converte em parte interessada em fomentar o consumo” nas palavras de Eugênio Bucci. Não há nada de ilegal nisto, contanto que a intimidade dos envolvidos seja respeitada pelos veículos de comunicação, o que dificilmente acontece. 
Há, isto sim, imoralidade e sensacionalismo. Estabelece-se um conflito ético, com dois valores constitucionalmente consagrados em jogo nesta relação: a liberdade de expressão e a intimidade. A mídia, amparada na liberdade de expressão, noticia tudo o que pode sobre os casos penais, alegando que deve informar o cidadão. O indivíduo, de fato, tem o direito de ser informado e o repórter tem assegurado seu direito de se expressar, o liame deve ser a privacidade dos acusados.
Dalmo de Abreu Dallari ensina que “A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo. (...) Como é evidente, esse direito e essa garantia não são um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Mas dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação de opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever, semelhante a outros de relevante interesse social, como o sufrágio.”
Este dever, porém, dificilmente é respeitado no Brasil. A imprensa se protege no seu direito de informar para reportar, distribuir “provas” e “evidências” nem sempre obtidas por meios lícitos (são profícuos os casos de escutas e grampos ilegais e os noticiários exibem a toda hora áudios editados de gravações que deveriam ser restritas ao judiciário). 
A manipulação desses dados é também recorrente. Em fevereiro de 2013, a médica Virgínia Helena Soares de Souza foi presa em Curitiba acusada de administrar a eutanásia a pacientes internados na UTI de um hospital de Curitiba. O “Fantástico” trouxe o caso como reportagem principal na mesma semana com cópias das transcrições de grampos usadas para incriminá-la. Em uma delas, a médica teria dito a frase “preciso assassinar”. Cinco dias depois, a imprensa divulgou o erro, novas transcrições indicavam que a frase dita na verdade foi “preciso raciocinar”. Tarde demais.
Sobre isto, alerta Claus Roxin: “Uma falta de proteção no processo pode afetar também o acusado de maneira indireta, se pela pressão pública, criada pelos meios de comunicação, é acusado injustamente ou condenado a uma pena muito alta” Este tipo de julgamento, o trial by media, é marcado pelo imediatismo de informações e conclusões, nem sempre verdadeiras e quase sempre precipitadas. É o “descompasso entre o “tempo do jornal” e o “tempo da justiça” como trata Schreiber. A justiça tem seu próprio tempo. Marília de Nardi Budó nota que “Enquanto o processo judicial instituído é dotado de diversas fases e não pode ser rápido, sob pena de gerar uma decisão baseada em emoções, o processo midiático é frenético e inquisitório: o mesmo órgão investiga, acusa sem defesa, julga e executa a pena de execração pública, de destruição da honra, da vida privada, da imagem, da identidade e, é claro, da presunção de inocência”
Este “tempo da justiça” não se limita à duração do processo e não deve ser sinônimo de impunidade. Víctor Gabriel Rodríguez alertou para isto ainda durante o julgamento da AP 470: “Começam os votos dos ministros no caso do mensalão e digo, sem medo de errar, que o que vem por aí decepcionará grande parte da opinião pública. Não porque eventuais absolvições surjam na contramão do que as pesquisas indicam como vontade popular, mas apenas pelo início da fase enfadonha de todo o espetáculo midiático no qual se transformou o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o pouco interesse que a longa leitura de votos e as extensas discussões técnicas suscitarão nos espectadores não deveria induzir a uma impressão de justiça morosa e distante dos anseios da população.”
A interferência da mídia neste processo, porém, pode causar danos irreparáveis ao julgamento real. Ainda que existam figuras processuais como a do desaforamento, dificilmente um caso de grande repercussão encontrará lugar para ser julgado depois de exposto na grande imprensa e nos meios de comunicação modernos. Pior, os julgadores estarão irremediavelmente em contato com provas produzidas fora dos autos, que, apesar de sua origem duvidosa, podem ser capazes de contaminar seu juízo. Nas palavras de Flávia Rahal ocorre uma “carnavalização do processo”.
Não há como dissociar o julgamento da AP 470 de um autêntico Trial by media. Mesmo que dentre os julgadores encontre-se onze das figuras mais capazes da nação para fundamentar suas decisões e não se inibirem com qualquer tipo de pressão. Todos os juízes são homens e mulheres inseridos num contexto social de contato diário com a mídia, e isto atinge inclusive os componentes da Suprema Corte, acostumados com pressões de todo tipo. 
E, ainda que em um julgamento, como foi o caso, estejam envolvidas pessoas públicas, há que se lembrar que mesmo elas têm vidas privadas, com família e intimidade que não podem ser destruídas diante de qualquer que seja a acusação. A Áustria traz o exemplo paradigmático de um jornalista condenado pela intensa cobertura que deu ao julgamento de um ex-ministro das finanças acusado de sonegação fiscal. Alfred Worm, o jornalista, foi condenado à multa que seria convertida em 20 dias de prisão no caso do não pagamento por ter veiculado uma série de reportagens a respeito do julgamento de Hannes Androsch, o ex-ministro das finanças da Áustria, que resultou na condenação de Androsch.
Como escreve Toron, citando Antoíne Grapon, “o trial by media, onde a controvérsia é reduzida a um espetáculo muito mais próximo da arte de tourear do que da discussão razoável, reforça o efeito de verdade em detrimento da verdade; a sedução em detrimento da argumentação”. E, quando valores tão caros como a intimidade estão em jogo, faz-se indispensável a verdade serena e livre de pressão para a tomada de decisões, seja o réu quem for.
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