quinta-feira, 16 de julho de 2015

FORUM SOCIAL MUNDIAL PEDE QUE GIL CANCELE SHOW EM ISRAEL

Querido Gilberto Gil,
Muitas cartas foram escritas a Caetano Veloso recentemente. Esta é para você, que já faz parte da história de grandes momentos do Fórum Social Mundial, no qual tantas vezes nos encontramos. Você esteve conosco em Mumbai e em Túnis e não podemos esquecer das vezes em que, como músico ou como ministro, juntou-se a nós em Porto Alegre, nos nossos laboratórios de ativismo cultural.
Na Tunísia, em 2013, você nos deliciou com seu show, mas talvez não tenha tido a oportunidade presenciar uma das maiores marchas, senão a maior, da história do Fórum Social Mundial, quando milhares de pessoas, de várias partes do mundo, que estiveram naquele encontro, muitas das quais ainda cantarolavam suas canções, ocuparam a grande avenida que conduz do centro de Túnis à Embaixada da Palestina e caminharam quilômetros e quilômetros para dizer não à ocupação promovida pelo Estado de Israel. Não terá havido na história do FSM marcha mais demorada, de um dia todo, até o anoitecer, de gente caminhando para manifestar seu afeto e disposição de somar forças com o povo palestino, contra a ocupação, os chekpoints, o apartheid.
Um dia antes, pessoas das várias nações reunidas em Túnis, e muitas mesmo do Brasil, se encontraram para proclamar como estratégia da solidariedade e da busca da paz, a saída não violenta do BDS: a campanha mundial de Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel, até que a Palestina seja livre.

Esta decisão apenas referendou um outro processo, muito mais difícil, demorado e delicado, que as várias expressões da luta palestina conduziram dentro de casa, até chegar a um consenso sobre a estratégia que melhor funcionaria para promover o recuo de Israel em sua tenebrosa sanha da ocupação: o chamado mundial a uma campanha BDS, em que o componente cultural é um elemento de grande sensibilização.
Nós, que nos solidarizamos com o povo palestino, acatamos a mensagem, e nos somamos a essa campanha, reafirmando o compromisso com ela, nos fóruns temáticos do Brasil, no fórum de 2013 e no mais recente que ocorreu outra vez na Tunísia, neste ano de 2015.
A construção do BDS tem sido um demorado processo, que enfrenta inclusive a poderosa propaganda que estigmatiza o povo palestino e trata uma situação de resistência como um antigo conflito étnico e religioso e entre forças iguais. Não é igual, não é antigo. Começou em 1948, quando palestinos históricos (e a Palestina era formada por muçulmanos, cristãos e judeus), foram arrancados de suas casas e transformados em refugiados. Os símbolos religiosos invocados pelo Estado de Israel - expropriação que muitos judeus pelo mundo denunciam – são utilizados como escudo para preservar um estado de apartheid.
Ao longo da persistente construção do BDS, você esteve algumas vezes se apresentando em Tel-Aviv. É compreensível que tenha lhe parecido uma campanha mais ativista que cultural, sem peso para mudar as coisas no mundo do showbizz. E de fato, nada aconteceu pelo fato de você ter ido.
Temos lido essa sua declaração como justificativa para ir mais uma vez a Tel-Aviv, e também para explicar a Caetano que ir a Israel não é de fato um problema. Voce já foi antes e nada aconteceu. E se nada aconteceu, por que não fazer seu show em Tel-Aviv uma vez mais?
Hoje, como você pode ver, a consciência de que é preciso fazer uma ação coordenada de solidariedade ao povo palestino, através do BDS, que obrigue Israel a por fim à ocupação, já é muito maior do que nas outras vezes. Mas, de fato Gil, a sua decisão de ir a Israel talvez não mude nada, talvez até ajude a manter e a naturalizar as coisas como estão. Não temos dúvida sobre o uso do seu show com Caetano para que nada mude na relação de Israel com o povo palestino. Mas servir de propaganda de normalidade para um Estado ocupante não combina com você, não combina com Caetano Veloso, não combina com a história da Tropicália, que voces irão celebrar.
O mundo, infelizmente, estará celebrando outra coisa. Você e Caetano irão a Israel agora em julho, quando se completa um ano dos massacres em Gaza, contra o qual todas as organizações e movimentos sociais ligados ao FSM se levantaram em 2014. Foi inclusive o motivo para que várias organizações do Conselho Internacional do FSM aprovassem uma Missão Humanitária a Gaza - que no entanto só chegou à Cisjordânia, por ter sido barrada por Israel. Agora, novamente, vimos uma Flotilha Humanitária barrada nas águas que cercam a Faixa de Gaza. É incrível como a solidariedade com um povo devastado por crimes de lesa-humanidade é algo que incomoda o poderoso Estado de Israel.
O massacre de Gaza está sendo lembrado em todo planeta. Será muito triste que, enquanto isso, voces estejam cantando para um público apoiador daqueles massacres. Foi o que vimos na imprensa, nas pesquisas, e nas demonstrações públicas de simpatia do povo israelense à destruição sem fim dos habitantes históricos das terras palestinas. Por isso pedimos a você e a Caetano que mudem de ideia. Que anunciem o cancelamento de seu show. Aqueles que, lá, se colocam contra a ocupação, certamente entenderão e apoiarão esse gesto.
Seria realmente importante, se vocês pudessem ir à Gaza, em vez de Tel-Aviv, para ver com seus olhos o que foi feito das casas, cidades, escolas e hospitais, das famílias que vivem ou viviam lá. Algumas famílias inteiras, das bisavós aos bebês, tios, primos, irmãs e irmãos foram aniquilados - verdadeiros genocídios concentrados em famílias inteiras foram praticados diante dos nossos olhos, expostos nas redes sociais.
Se vocês pudessem ir à Cisjordânia, em vez de Tel-Aviv, poderiam ver as placas de carros de cores diferentes, para estradas de qualidades diferentes, para seres humanos que o Estado de Israel separa como diferentes. O apartheid é praticado ali com toda sua força. Se você tomar um ônibus de Ramalah para Jerusalém, poderá seguir tranquilo até o destino. Mas no meio do caminho verá os palestinos sendo retirados desse ônibus, para submeterem seus corpos, bagagens e documentos aos soldados do check-point de Israel. Eles não voltarão, porque esse ônibus não vai esperar por eles.
Se vocês visitarem o bairro árabe de Sheikh Jarrah de Jerusalém, onde mora o senhor Nabeel e sua família, verão que a parte da frente dessa casa foi tomada por um colono americano que pode hostilizar os moradores dos fundos quantas vezes quiser. A polícia israelense não irá importuná-lo. Porque ele está ali para isso mesmo - convencer aquela família a deixar, humilhada, sua casa invadida em Jerusalém. Podemos lhe dar o endereço. Você poderá ver com seus olhos.
Se voces forem ao Vale do Jordão, procurem o caminho que leva ao vilarejo de Fasayil. Não será difícil. Logo vocês verão uma placa: caminho para uma vila Palestina, perigo para Israelenses. Sim, isso é uma placa de trânsito, seus guias não estarão traduzindo mal as inscrições do hebraico. E se vocês chegarem à vila, encontrarão palestinos arrancando barro do chão dos quintais, para refazer tijolos, para reeguer as paredes, das casas e escola destruidas pelos colonos.
Não vamos falar da água, Gil. Va lá e veja por si mesmo. Quanto da água palestina os palestinos podem beber? Quanto cabe aos ocupantes? Mas olhe para cima de todas as casas e prédios palestinos, e voce verá apenas caixas d’água pretas. Fica fácil saber onde estão as famílias ocupantes e as ocupadas, fica fácil ver o apartheid de água. Convide Caetano para essa inusitada experiência. E sobre isto, não importam as explicações, tirem as suas conclusões.
Gil, você é uma das poucas pessoas no mundo que tem condições de ir onde quiser, escolher a quem se apresentar, e pode se informar por conta própria sobre o que se passa nas terras ocupadas pelos soldados e milicianos de Israel. Se quiser tanto assim, apesar dos apelos, vá a Tel-Aviv, e cante para Israel. Mas por favor não tente interpretar a realidade palestina pelos olhos dos colonos armados até os dentes, cercados de muros, e baseados em assentamentos ilegais. Não pense que as atrocidades contra a Palestina se explicam apenas pela política extremista de Netanyahu, e procure saber mais sobre todo o projeto sionista que decretou a não existência do povo palestino - esse povo cujas crianças nós vemos a ocupação dizimar dia após dia. Crianças que não existem, pela lógica da ocupação.
Talvez você vá, e talvez nada aconteça, mais uma vez. Mas isso, querido Gil, é que será o lado mais triste do que significará o show de vocês. Claro que nossa rejeição é voltada à ocupação e ao apartheid praticado por Israel. Jamais a você ou a Caetano, que são objeto do nosso amor e admiração. Com vocês aprendemos muito. Que o amor é como um grão, de pura beleza, e por isso teimamos em cultivá-lo. E que a força da grana ergue, mas também destrói as coisas belas.
Gil
’A você e Caetano, pedimos: não cantem para o apartheid
 http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/5163-organizacoes-do-forum-social-mundial-pedem-que-gil-nao-cante-em-israel

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