A violência na classe média,
item diário da agenda da imprensa
Escrito por: Carlos Castilho
Fonte: Observatório da Imprensa
Fonte: Observatório da Imprensa
O caso do porteiro esquartejado em São Paulo parece ser o candidato fácil ao título de
crime monopolizador das atenções de jornais e telejornais da primeira semana de
junho, seguindo fielmente a tristemente célebre regra do “se sangrar vira manchete”
(adaptação da frase inglesa “if it bleeds, it leads”). Nem mesmo o frenesi pré-Copa foi
capaz de tirar das primeiras páginas o crime protagonizado por um publicitário paulista.
Este é apenas o mais recente de uma série de assassinatos que ganharam projeção
nacional graças à preocupação da imprensa em explorar delitos que envolvem
famílias da classe média. Os crimes na classe C e D não despertam mais a mesa
curiosidade dada a sua monótona frequência e motivos quase sempre ligados à
precária situação econômica das vítimas e criminosos.
Antes do caso do porteiro morto por um morador do prédio onde trabalhava,
assistimos durante mais de uma semana aos detalhes sórdidos do assassinato
do menino Bernardo, de 8 anos, no Rio Grande do Sul. Retrocedendo mais no
tempo encontraremos uma lista consistente de crimes em família, fato que leva
a uma perturbadora dúvida: está aumentando a frequência de assassinatos na
classe média brasileira, ou é a imprensa que está exagerando depois de descobrir
um novo filão para atrair a atenção do público?
As estatísticas policiais podem oferecer elementos para atestar a veracidade ou
não da primeira parte da pergunta, mas a observação crítica da imprensa mostra
que a segunda parte é, pelo menos, parcialmente verdadeira. É óbvio que os
jornais e telejornais não são os responsáveis pelos delitos cometidos entre
pessoas da classe média, mas o fato de terem transformado dramas
intrafamiliares em item de agenda noticiosa pode facilmente ser associado a
uma preocupação com o faturamento.
A monotonia da cobertura jornalística sobre corrupção pública e privada, a
crescente impopularidade e desinteresse pelo noticiário político, a sucessão
de manifestações de protesto e o registro impotente dos assaltos, roubos e
sequestros levaram a imprensa a buscar novos temas para reconquistar o
interesse de um público cada vez mais viciado em redes sociais e no voyeurismo
virtual.
A classe média urbana, antes protegida por uma cumplicidade da imprensa em
relação aos seus conflitos domésticos, passou agora a principal protagonista de
reportagens investigativas nas quais o voyeurismo e a solidariedade passional
são os principais ingredientes da nova receita jornalística. Os segredos da vida
privada tornam-se públicos e tema de intermináveis debates na imprensa sempre
que coincidam com tragédias impactantes.
Por outro lado, em especial na TV, há um discreto incentivo à manifestação
da ira comunitária e à cobrança de justiça a qualquer custo. Como jornais,
revistas e televisão deixam de lado a investigação jornalística para privilegiar
informações dadas por policiais, advogados, especialistas e magistrados,
acabamos perdidos num mar de jargões, opiniões disfarçadas de verdades,
silêncios cúmplices e dados distorcidos. Resultado: não conseguimos entender
o que aconteceu, ficamos a espera de respostas, até que um novo crime
monopolize as manchetes e, consequentemente, a nossa atenção.
A exploração comercial da violência nas famílias de classe média mostra tanto
o estado de nervos de um segmento da sociedade até agora relativamente
imune ao sensacionalismo,, como também o fato de a imprensa não conseguir
romper a dependência das vendas como fator dominante da determinação
da agenda de reportagens. Todos os crimes famosos dos últimos meses
não produziram resultados conclusivos e permanece uma névoa de dúvidas
sobre suas causas, implicados e consequências.
A classe média é o segmento mais dinâmico no contexto social
contemporâneo do país. Todas as transformações verificadas desde que
começou a política de distribuição de renda geram questões de enorme
interesse público por conta das tensões e contradições que provocam. Mas
a imprensa parece não ter se dado conta dos fenômenos sociais em curso
e foca apenas no pior lado da ascensão da classe média, o seu descontrole
emocional.
A mídia não deve deixar de cobrir os crimes, mas precisa situar o seu
trabalho investigativo e documental num contexto de busca de soluções
coletivas. Não adianta execrar assassinos e nem muito menos destruir
reputações, se isto é promovido às custas do passionalismo e da
curiosidade mórbida. A prisão não é o único e nem o mais eficiente
desestímulo à banalização da violência na classe média. Saber por que
e como o dinheiro, a busca de status, a conquista do poder e a competição
desenfreada contaminaram as relações sociais é também uma missão
da imprensa, porque afinal ela existe para servir ao cidadão e à sociedade.
http://fndc.org.br/clipping/a-violencia-na-classe-media-item-diario-da-agenda
-da-imprensa-936969/
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