quinta-feira, 24 de julho de 2014

O RESTAURADOR DA PIETÁ DE MICHELANGELO, UM BRASILEIRO ESQUECIDO

Estive na conferência do prof. Redig de Campos mencionada na matéria de Daniel Piza, em 1973. À época, eu e três amigos, todos muito jovens, estávamos organizando em Taubaté o Museu Didático Estudantil, uma forma de protesto porque os museus de Taubaté haviam sido desmantelados e seus acervos haviam desaparecido. 

Os amigos de aventura eram Gilberto Martins, Jackson de Souza de Almeida Castro e Luiz Antonio de Souza (este último prematuramente falecido). 
Eu era repórter iniciante na Rádio Difusora Taubaté e ia atrás de depoimentos que fortalecessem nossa luta por um museu. Entrevistei a diretora da Fundação Calouste Gulbekian, de Portugal, ofiquei amigo do prof. Vinicius Stein de Campos, então diretor dos Museus do Interior do Governo do Estado, do padre Hélio Viotti, que então reerguia o Pátio de Colégio, em São Paulo, etc. 
E o depoimento do prof. Redig de Campos, sua gentileza, me marcaram para sempre. Guardo até um seu autógrafo. Além disso, a palestra sobre a complexa restauração da Pietá, de Michelangelo, que anos depois eu vi na Basílica de São Pedro, já cercada de vidros à prova de bala, foi brilhante e emocionante. 
Eis o texto que encontrei sobre este brasileiro pouco reconhecido, de autoria do também recentemente falecido crítico Daniel Piza, no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 16 de junho de 2009:


Memórias de um brasileiro no Vaticano


Ele morava na famosa Praça da Espanha, em Roma, vizinho ao amigo e pintor Giorgio De Chirico. Trabalhava à mesa que tinha sido do escultor Antonio Canova, no Museu do Vaticano. Desenhava e pintava nas horas de folga, depois de abandonar o sonho juvenil de ser artista. Escrevia livros e artigos sobre o Renascimento. Coordenava empreitadas como as restaurações de duas das maiores obras de arte da história, a Pietà de Michelangelo e A Escola de Atenas de Rafael. E era brasileiro. Seu nome: Deoclecio Redig de Campos (1905-1989).
O curador brasileiro que ocupou o cargo mais alto já ocupado por um compatriota da mesma carreira não foi lembrado em seu centenário de nascimento, há quatro anos. Tampouco foi lembrado agora, 20 anos depois de sua morte, no dia 6 de abril. Mas o trabalho que fez pela arte italiana, assim como o livro Considerações sobre a Gênese da Renascença na Pintura Italiana (único lançado no Brasil, pelo MEC em 1958), é parte irremovível da história. E ele, Deoclecio, está muito vivo na memória de seus familiares, como a filha, Daniela, que mora em Roma, e os sobrinhos, Joaquim e Maria Clara, no Rio de Janeiro, que conversaram por telefone com o Estado.
Com a figura semelhante à do líder egípcio Nasser, com nariz adunco, bigode e pele morena, Deoclecio era um homem elegante, sempre de terno e com um cachimbo à mão ou à boca. Nascido em Belém (PA), morou no Brasil apenas até os 5 anos. Seu pai, também Deoclecio, era diplomata e foi enviado para Alemanha, Suíça e Itália sucessivamente. Foi em Roma que o filho se formou em Filosofia e História da Arte, sob orientação do respeitado Adolfo Venturi, e, apaixonado pela obra de Michelangelo, decidiu ficar para sempre.
Um curso de restauração, em 1933, colocou Deoclecio dentro do Vaticano, onde faria carreira até se aposentar em 1978. Ali foi conservador-chefe e depois diretor. “Professore De Campo”, assim o chamavam os funcionários; Deoclecio não gostava, porque jamais deu aula. No mesmo ano em que entrou para o laboratório do museu, ele se casou com a abonada italiana Virginia Kambo, com quem teria Daniela e Manuel. “Meu pai era um homem gentilíssimo”, diz a filha. “Ele sempre nos apoiava e estimulava, como se fosse um amigo.”
A Pietá, de Michelangelo Buonarrotti, restaurada pelo brasileiro Deoclécio Redig de Campos.
Joaquim e Maria Clara o descrevem como um homem ao mesmo tempo muito culto e muito simples, um poliglota e esteta afável e conversador, que não tinha traço professoral algum. Era também um tio atencioso, que perguntava sempre sobre a vida e os trabalhos dos parentes. Vinha pouco ao Brasil, mas era sempre visitado pelos sobrinhos na Itália. “Ele não falava mal de ninguém”, diz Maria Clara, arquiteta, filha de outro arquiteto, Olavo Redig de Campos (1906-1984), com obra importante no modernismo brasileiro.
“A gente andava com ele por Roma e ele nos mostrava obras nas praças com a maior simplicidade. Também estive com ele em Florença, Veneza e Assis. Foi maravilhoso”, relembra Maria Clara. Joaquim, designer, diz que testemunhou “vivamente” tais qualidades do “tio Deoclecinho” durante uma visita em 1969, aos 23 anos, ouvindo as explicações “claras, visíveis, didáticas e reveladoras” durante algumas horas, “entrando e saindo de salas e salões, passando por infindáveis portas, algumas fechadas, às vezes até subindo em andaimes para ver os trabalhos de restauração”.
Rigoroso, Deoclecio chegava a refazer dezenas de vezes a mesma peça de restauro, até atingir o que desejava. Único dos quatro irmãos a não voltar ao Brasil, foi também adido cultural no Vaticano por mais de 30 anos. Sua vida teve outros momentos marcantes como os dois anos durante a 2ª Guerra Mundial em que precisou se refugiar em aposentos do museu, pois o Brasil tinha passado para o lado dos aliados contra a Itália de Mussolini.
Outro momento foi o de 1972, quando um húngaro martelou o nariz da Pietà, a qual seria restaurada pela equipe de Deoclecio. À imprensa, declarou que era como ver “um parente gravemente ferido, e um parente muito amado”. À família, contou que teve uma conversa com o agressor, Laszlo Toth, mas que ele só dizia em inglês “Eu sou Jesus Cristo”. Por causa da restauração, Deoclecio ganhou uma eminência que não tinha tido até então, inclusive no Brasil, aonde veio dar conferência sobre o trabalho em 1973, no Masp.
Recebeu inúmeras homenagens da Itália, onde viveu 71 dos seus 84 anos, e algumas do Brasil, onde chegou a ser consultado para uma reforma dos profetas de Aleijadinho. Nos últimos anos de vida, sofreu do Mal de Parkinson. Numa carta para o Itamaraty em 1975, dissera estar feliz em ser considerado “um estudioso brasileiro” e acrescentou em latim, “ubique Patriae memor” – em qualquer lugar, a memória da pátria. Que ainda lhe deve uma memória.

http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/memorias-de-um-brasileiro-no-vaticano/

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