O jornalista e militante Celso Lungaretti, com quem me encontrei poucas vezes e troquei alguma correspondência, tem um blog muito dinâmico e corajoso: naufrago-da-utopia.blogspot. Recomendo que visitem e conheçam o material, inclusive seus depoimentos sobre seu amigo Geraldo Vandré, com dados pouco conhecidos.
Aqui reproduzo um de seus posts mais recentes, sobre a violência da repressão durante a ditadura militar. Quem é daquele tempo vai lembrar-se; quem não viveu a triste época, precisa conhecer bem, e lutar para que nunca se repita.
ASSIM MATAVA A DITADURA
De vez em quando O Estado de S. Paulo faz verdadeiro jornalismo, honrando suas tradições centenárias.
É o caso do ótimo trabalho investigativo desenvolvido por Marcelo Godoy, A tortura e a morte, pela voz dos porões, cuja leitura integral recomendo enfaticamente.
Como o texto é longo, vou reproduzir aqui o mais chocante, qual seja a sistemática de assassinatos introduzida pela ditadura militar nos estertores da luta armada (os intertítulos e a edição -- corte de trechos dispensáveis -- são meus):
"Pela primeira vez uma dezena de agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo decidiu falar. Diretamente envolvidos nas operações contra a guerrilha urbana, eles trabalharam na mais secreta das seções do órgão: a Investigação. (...) O que eles relatam aqui ao Estado são detalhes de como funcionou a estrutura que possibilitou a prisão, a tortura e a morte de dois casais de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos de esquerda que pegaram em armas contra o regime militar.São dois casos exemplares, que representaram o fim de uma era e o início de outra no DOI. Ninguém mais que estivesse marcado para morrer teria a execução justificada com a encenação de um tiroteio: o segredo e o desaparecimento se tornariam regras....A "ERA USTRA": EXECUTAVAM OS RESISTENTES E DAVAM-NOS COMO MORTOS EM TIROTEIO
Em segundos, outros cinco homens armados se atracaram com o guerrilheiro enquanto dois passageiros se levantaram e detiveram Sônia. Quatro dias depois, a morte do casal foi noticiada pelos jornais. O comunicado do Exército dizia que haviam resistido à prisão, na zona sul de São Paulo, sendo alvejados num tiroteio.Filha do então tenente-coronel do Exército João Luiz de Moraes, Sônia [Maria Moraes Angel Jones] fora casada com o líder do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) Stuart Edgar Angel Jones.[Antônio Carlos Bicalho] Lana, seu companheiro, era (...) era um dos últimos cabeças da ALN ainda vivos."Eles estavam em um ônibus, que parou num posto de venda de passagens, perto do Canal 1, em Santos", conta o agente Alemão. Lana desceu e foi comprar os bilhetes para São Paulo - Sônia ficou no ônibus. Enrolada em uma toalha, ele carregava uma pistola.
O guerrilheiro recebeu uma coronhada, assim como [o capitão do Exército Ênio Pimentel da Silveira, vulgo Doutor] Ney, ferido acidentalmente por um subordinado. No ônibus, dois agentes prenderam Sônia. Lana subiu a Serra do Mar no Corcel do Doutor Ney. Ele e Sônia foram levados a um dos centros clandestinos de detenção da Investigação: o Sìtio, no Cipó, na zona sul - o outro era a Boate, em Itapevi, na Grande São Paulo. "O Ney queria os cabeças. Ele não matou o Bruno (Lana) porque queria informação (...)", disse um oficial. O destino de Bruno, no entanto, estava selado. Ele ia morrer. Sua companheira também não ficaria viva.No Sítio e na Boate, os presos ficavam acorrentados em argolas presas às paredes. O acesso a eles era restrito até para integrantes da Investigação.Antes de executar o casal com tiros no tórax, cabeça e no ouvido, era preciso justificar as mortes. O teatro simulando a perseguição e o tiroteio foram encenados na zona sul. Uma tenente da PM fez o papel de Sônia e um agente, o de Lana....[o tenente-coronel Aldir Santos Maciel, que dois meses depois passaria a chefiar o DOI/SP] reafirmou a versão de que o casal morreu em tiroteio, "o último na rua que houve em São Paulo". De fato, em seu comando no DOI (1974-1976), não houve mais teatro. O método acabou com a saída de [Carlos Alberto Brilhante] Ustra [o comandante no período 1970-1974). A partir de então, todos desapareceram, sem explicações.A "ERA MACIEL": EXECUTAVAM OS RESISTENTES EM SEGREDO E SUMIAM COM SEUS CORPOS
Foi o que ocorreu com o segundo casal dessa história: Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski. Os agentes contam que, sob o comando de Maciel, eles foram presos em São Paulo, em 22 de abril de 1974, e levados ao Rio. "O casal foi morto no Rio", disse o agente Fábio. Lá, em Petrópolis, havia outra prisão clandestina.As prisões ocorreriam (...) quando Wilson desceu de um Fusca, no Anhangabaú, no centro [de São Paulo]. Olhou para os lados e, ia atravessar a Avenida 23 de Maio, quando foi agarrado por Zé. Mais adiante, outros agentes detiveram Ana Rosa. O casal foi entregue ao Doutor Ney.
Oficialmente, o casal nunca foi detido. Seu sumiço foi o prenúncio do que ia ocorrer com metade do Comitê Central do PCB.Vários líderes do Partidão morreram na Boate. Corpos esquartejados foram amarrados a mourões e lançados de madrugada num rio. "Era perto de Avaré", disse um oficial. "O Marival é um traidor, mas não mentiu (Marival foi o primeiro a falar da Boate, em 1992; nas buscas feitas num rio em Avaré, os bombeiros só acharam pedaços de concreto)", contou Zé. O método só acabaria com nova troca do comando. Maciel e o general Ednardo D?Ávila Melo, chefe do 2º Exército, foram substituídos após a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI de São Paulo, em 1976."
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